Grande Cthulhu, 85

Um ser dotado de poder ilimitado, morto e sepultado por seus inimigos, promete que um dia voltará à Terra. Mais: que seu retorno precipitará o fim do mundo e, em meio a uma série de pragas e sofrimentos, criará uma nova realidade, onde o ser onipotente reinará absoluto e onde seus adoradores fiéis, principalmente os que sofreram agruras e perseguições em seu nome, terão uma vida eterna de delícias. Já seus adversários e os que não acreditaram nele serão condenados a um sofrimento indescritível e infindável.

Responda rápido: estou falando de Jesus Cristo ou do Grande Cthulhu?

A vida e o trabalho do escritor americano H(oward) P(hilips) Lovecraft, criador do supracitado Cthulhu – monstro alienígena que dá nome ao conto O Chamado de Cthulhu, cuja publicação original, no pulp Weird Tales, completa 85 anos neste mês – , foram analisados sob as mais diversas chaves.

Há desde a psicanalítica (onde o desapreço do autor por frutos do mar, explícito na concepção de monstros sob a forma de lulas, peixes e crustáceos, já foi interpretada como sinal de repugnância pela genitália feminina) à política (onde os críticos costumam chamar atenção para o posicionamento racista e elitista que transparece em várias obras lovecraftianas). Menos conhecidas, no entanto, são as análises filosóficas e teológicas do trabalho de Lovecraft – e que, no entanto, existem: em 2010, os escritos de Lovecraft sobre religião foram reunidos pelo crítico e biógrafo S.T. Joshi no volume Against Religion, com prefácio de Christopher Hitchens.

Joshi e o escritor, editor, crítico e teólogo (de formação batista, hoje ateu) Robert M. Price são, aliás, os principais intérpretes modernos do pensamento religioso de Lovecraft. E ambos apontam para um forte senso de humor subjacente ao trabalho desse escritor, que foi uma das vigas mestras da literatura de horror em língua inglesa – e, por tabela, de toda a cultura pop global – no século passado.

Até hoje a indústria cultural, por meio de cinema, quadrinhos e livros, não se cansa de reciclar os temas e clichês que estabelecidos por ele, como a ideia de que a mitologia humana não passa de uma distorção da ciência de alienígenas que visitaram a Terra no passado distante (não, isso não foi invenção de Erich Von Däniken).

Esse senso de humor se faz presente, por exemplo, no jogo estabelecido entre Lovecraft e outros escritores do mesmo período, como Robert E. Howard (criador do bárbaro Conan), no qual um autor citava criações do outro – monstros, livros, personagens – dentro de sua obra, dando a impressão de que ambos estavam a se referir a uma fonte comum: uma mitologia obscura, ou algum tipo de doutrina mística secreta.

O melhor exemplo desse jogo é o Necronomicon, livro fictício que conteria a verdadeira história do planeta Terra e de suas interações com raças de outros mundos e de outras dimensões. Inventado por Lovecraft e logo adotado pelos demais autores de seu círculo – que submetiam a terríveis torturas personagens que ousassem ler o tomo proibido – o livro que nunca existiu acabou sendo levado a sério por ocultistas os mais diversos, e não são poucas as supostas “traduções” do original que circulam no mercado.

Ateu, materialista e racionalista, Lovecraft certamente acharia graça disso. O paralelo entre o cristianismo e sua mitologia de deuses adormecidos que prometem retornar; de deuses que se reproduzem com mulheres humanas é forte demais para não ser notado. Embora, de fato, não tenha sido, durante muito tempo.

Isso talvez se deva à roupagem popularesca em que as histórias apareceram originalmente (impressas em pulp magazines) e à influência posterior de August Derleth. Principal popularizador da mitologia lovecraftiana nas décadas que se seguiram à morte do autor, Derleth era católico e, talvez inconscientemente, retrabalhou muito do “mito artificial” deixado por Lovecraft num molde mais palatável de um duelo milenar entre anjos e demônios, ainda que travestidos em alienígenas “do bem” e “do mal”.

Mas, como escreve Robert M. Price, “os leitores de The Dunwich Horror não demoraram em notar a paródia da narrativa do Evangelho nesse conto”. Nessa história, uma virgem norte-americana é sexualmente possuída por uma “divindade” e dá à luz um filho que é morto pelas autoridades, depois de manifestar poderes sobrenaturais e pretensões messiânicas.

No conto, no entanto, os eventos são narrados fora da ordem clara apresentada nesta sinopse, e toda a trama aparece sob a forma da investigação em torno do roubo de um exemplar do Necronomicon, que faz as vezes de “mcguffin” hitchcockiano. Isso permite encarar a narrativa como um mero mistério sobrenatural, na linha que seria explorada, décadas depois, por séries como Arquivo X (ou, mais recentemente, Fringe).

Mas quando o mote principal da trama é explicitado, o paralelo com os Evangelhos é inegável, e a sugestão de que o “horror de Dunwich” representa uma visão paródica da Segunda Vinda torna-se inescapável.

Já em O Chamado de Cthulhu, um monstro alienígena que dorme sob os oceanos reúne, por meio de mensagens telepáticas que surgem sob a forma de sonhos, um culto dedicado a adorá-lo e a preparar o mundo para o seu despertar – depois do qual a Terra será destruída e recriada.

O paralelo com a escatologia cristã – com as aparições do Cristo Ressuscitado, como a que animou Saulo de Tarso a vestir o manto do apostolado, substituídas pelos sonhos de Cthulhu, a igreja cristã pelo culto do monstro, a Nova Jerusalém do Apocalipse substituída pelo Reino de Cthulhu – também é claro.

O Chamado de Cthulhu já foi traduzido várias vezes no Brasil. A primeira versão talvez tenha sido a publicada no volume O Que Sussurrava nas Trevas, da editora GRD, lançado em 1966, e que inclui também The Dunwich Horror. Em temos mais recentes, a Hedra publicou um volume onde a aventura de Cthulhu é o conto –título.

O estilo carregado de adjetivos de Lovecraft torna a tarefa de traduzir sua obra para o português um tanto quanto inglória. Não apenas porque o ritmo poético da prosa é difícil de preservar, como também pelo problema da tensão: se, em inglês, a adjetivação às vezes ajuda a reforçar o suspense – com o substantivo que define a ameaça aparecendo apenas ao final de uma cadeia de qualificações de arrepiar os cabelos – na estrutura tradicional do português, onde os adjetivos vêm depois do substantivo, o efeito torna-se, apenas, tedioso. As traduções variam muito em qualidade, e minha recomendação para quem lê inglês é procurar os textos originais.

Uma última curiosidade: The Dunwich Horror foi filmado em 1970, com o papel da virgem condenada a dar à luz o filho do alienígena a cargo de Sandra Dee, que na década anterior tinha se firmado como um ídolo adolescente. O filme foi produzido por Roger Corman.

(Este texto reaproveita e amplia um artigo anterior, publicado no blog Terroristas da Conspiração)

Comentários

  1. Eu estava pensando coisa parecida a respeito de Sherlock Holmes.
    É difícil não perceber o paralelo.
    O que conhecemos como o Novo Testamento nada mais é que textos que foram escritos décadas ou séculos depois da vida de Jesus; são atribuídos a pessoas que possivelmente não os escreveram. E são inúmeros os acréscimos posteriores à doutrina ou à história de Jesus.
    Da mesma forma, o que conhecemos como cânone de Sherlock Holmes nada mais é que textos atribuídos a John H. Watson (a granbde maioria), que não os escreveu. E são centenas os livros de outros autores (que não Conan Doyle) que contam aventuras outras de Sherlock Holmes, baseadas no cânone, e que se predispõem a contar hiatos da vida do detetive, tal como aqueles evangelhos apócrifos que narram fatos da infância de Jesus. Poder-se-ia até mesmo ir mais longe e comparar Maria Madalena a Irene Adler, naquela dúvida que fica no ar sobre a existência ou não de um romance entre essas mulheres e os protagonistas.
    Não estou dizendo que Jesus jamais existiu, mas assim como Sherlock Holmes foi baseado no professor Joseph Bell, podemos ter um paralelo semelhante, um se desenvolvendo para entretenimento, um outro se desenvolvendo como religião. Me parece ser também o caso que você narra nesse post.

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