Os peitos da Angelina

Não ia escrever nada a respeito, juro. Mas a velocidade com que bobagens a respeito estão aparecendo no meu mural do Facebook me obriga a concentrar a resposta num lugar só, e o blog está aqui para isso. Então, vamos lá.

A questão da mastectomia dupla da atriz Angelina Jolie é o tipo de coisa que se desdobra em várias outras questões subsidiárias, e um problema que vejo aparecer em muitas postagens e comentários sobre o caso é uma tendência de misturar, de modo espúrio, os diversos níveis -- usar a ciência dos testes genéticos para impugnar a decisão de Jolie de vir a público, ou a decisão de vir a público para detonar a genética, por exemplo -- quando, na verdade, cada parte merece ser analisada em seus méritos próprios. Este artigo da Salon faz um bom trabalho a respeito. Minha tentativa de fazer o mesmo segue abaixo.

O primeiro ponto, e creio que o menos polêmico de todos, é a decisão pessoal, intransferível, dela de realizar a dupla cirurgia: os peitos são dela, e se achou melhor tirá-los, é uma questão de foro íntimo sobre a qual ninguém que não tenha sido convidado a opinar tem de dar o menor pio.

Dá, é claro, para argumentar que, uma vez tendo optado por tornar a decisão pública, Jolie está fazendo exatamente isso, convidando a opinião pública a dar palpite. Mas vou deixar para tratar da decisão de escrever um artigo sobre o tema para o NY Times por último, porque ela arremata e complementa os outros pontos.

O primeiro é o dos genes BRCA1 e BRCA2. Angelina Jolie testou positivo para uma mutação deletéria do BRCA1, e diz que os médicos que a atendem afirmaram -- com base não apenas no gene, mas em outros fatores específicos dela e de sua família -- que seu risco de vir a desenvolver câncer de mama ao longo da vida seria de 87%. Esse é um fator que muito poucos dos comentários que vi levam em consideração: Angelina Jolie não sucumbiu a uma espécie de "determinismo genético". O teste de DNA foi um fator que entrou no cálculo do risco. Talvez tenha sido o mais importante, mas os médicos ponderaram outras questões também.

E até que ponto a ligação das mutações do BRCA1 e do BRCA2 com o câncer de mama é sólida? Bastante: estudos científicos apontam que a presença de mutações negativas desses genes implicam um aumento médio de cinco vezes no risco básico de uma mulher vir a desenvolver câncer de mama ao longo da vida -- um salto de 12% para 60%. O valor do exame é tamanho que há uma batalha em curso, na Suprema Corte dos Estados Unidos, sobre se a patente desses genes, obtida pela empresa que os descobriu, é válida ou não.

Há algumas teorias da conspiração que apontam o artigo de Angelina Jolie como uma tentativa de influenciar o resultado a favor (óbvio) dos malvados capitalistas. Mas, primeiro, o caso dela não afeta em nada os argumentos apresentados à Corte, que dizem mais respeito à definição do que é "invenção" em oposição ao que é "natural" do que da eficácia ou da importância da descoberta. Segundo, se o artigo aponta algo, é que a patente pode estar pondo vidas em risco, ao tornar os exames mais caros e dificultar a criação de novas tecnologias de detecção.

Um ponto que é bem mais complexo do que as postagens mais irresponsáveis dão a entender é o conceito de risco. Normalmente, risco é definido como uma probabilidade multiplicada por uma perda -- por exemplo, se você tem uma chance de 10% de perder R$ 1.000, seu risco é de R$ 100.

Com isso, daria até para pôr um valor monetário na decisão de Angelina: 87%, multiplicado pelo custo de um tratamento de câncer, contra o que ela teve de pagar pelas cirurgias a que se submeteu, mais a probabilidade de as operações não darem certo ou terem sequelas graves multiplicada pelo custo de reparar ou administrar esses problemas eventuais.

Mas é claro que o trauma psicológico da doença, o desconforto de uma quimioterapia, somado ao risco de vida associado, é algo difícil de quantificar. Daí, vem a questão: como decidir se tudo o que se tem são probabilidades, quando os valores envolvidos em um dos lados do cálculo são largamente imponderáveis?  Sem falar que Angelina Jolie e Brad Pitt são um dos casais mais ricos do mundo, logo o custo financeiro não deve ter pesado muito na decisão deles. E esse é um fator que evidentemente os separa de boa parte do restante da população do planeta.

Tudo isso -- a visão particular do risco, o cálculo dos perigos e dos benefícios, o peso que a escolha vai impor aos recursos (financeiros, emocionais, tecnológicos) disponíveis, e os custos de não fazer nada ou de fazer outra coisa -- faz com que a decisão de Angelina Jolie tenha sido extremamente pessoal, como extremamente pessoal será qualquer decisão tomada por uma mulher que tenha as mesmas informações que Angelina Jolie teve à mão: perfil genético, histórico familiar, cálculo de risco, conselho de médicos de confiança, tamanho da conta bancária.

O que nos traz ao ponto final, a questão do artigo no New York Times. Se a situação toda é tão profundamente pessoal, por que trazê-la a público? Pondo as conspirações tolas de lado, há o risco, muito claro, de o depoimento da atriz vir a inflar a demanda por testes genéticos.

Sistemas de saúde de todo o mundo funcionam com recursos limitados, e exames desnecessários não só representam um custo a mais em si, como também aumentam o número de falsos positivos -- se, digamos, 1% de todos os exames indicam a presença de um problema inexistente e um milhão de pessoas fazem os testes, haverá dez mil tratamentos desnecessários para pagar, o que sobrecarrega inutilmente o sistema. O Reino Unido, por exemplo, tem regras bem estritas para a realização desse tipo de exame.

Por outro lado, há a possibilidade de o artigo ajudar a reduzir o estigma ligado à doença e, também, à mastectomia. Confesso que tenho dificuldade em levar a sério esse tipo de celebrity power -- parafraseando uma megacelebridade fictícia da HQ Marshal Law, "se eu digo que limpar a bunda com purê de batata é bom, é culpa minha as pessoas serem idiotas a ponto de acreditar?" -- mas sou forçado a reconhecer que ele existe. E uma atriz de perfil sexy dizer por aí que trocou os peitos por próteses, por questão de saúde, e que está tudo bem e que seu marido ainda a ama pode, no fim, ser uma influência importante para quem liga para esse tipo de coisa.

Comentários

  1. Gostei do seu texto. Recentemente no facebook postei a seguinte frase: "A Angelina Jolie deveria ter tirado o cérebro. Parece que doença mental chegou antes do câncer."
    Por que? Bem, em primeiro lugar, ela tem essa decisão em suas mãos. Porém, como você mesmo citou, sendo os EUA o país mais comercializador de saúde do planeta. E com certeza, algum ela levou pra divulgar o caso sendo uma coisa particular. Não considero um exemplo de maneira nenhuma, pois, caso você realmente não tenha dinheiro lá, você está literalmente morto. É muito fácil, cuspir "tirei meus peitos" na sociedade, quando no dia seguinte os peitos estarão lindos novamente com uma cirurgia plástica caríssima (pois ela é famosa). Quando 98% da população, quando é obrigada a fazer mastectomia é obrigada a ficar sem peitos. Isso sem contar o fator probabilístico, pois 87% de chance, você tem 13% de chance de não ter. É o caso da moeda atirada 100 vezes pra cima, e nas 100 vezes dar cara. Claro não se pode contar com isso, porém inverta a situação, se ela já estivesse com câncer iria ela se apegar a probabilidade de morte de 60%, ou aos 40% de que pode viver com tratamento. Como decisão pessoal, é problema dela, como exemplo pra sociedade, continua sendo um lixo capitalista.

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    1. Sem dúvida é um lixo todo comentário ideológico como o seu, As falácias, as contradições e a costumeira falta de noção são sempre comuns num comentário ideológico (seja religioso ou político).

      Gostaria de saber se um médico dizendo a você que tem 87% de probabilidade de ter um câncer na vesícula, pâncreas ou testículos, se você consideraria os 13% de maior significado e se morreria de desgosto achando-se "capitalista" por conscientemente tomar a decisão de extrair,

      Isso já basta para desmontar o "chururú" costumeiro ideológico.

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  2. Saiu sem meu nome o comentário. Não tinha configurado o perfil no blogger ainda. Rodrigo Saraiva

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