Críticas, linchamentos e taurascática

Eu não pretendia, mesmo, entrar nessa refrega sobre linchamentos retóricos e celebridades contritas, mas um argumento que venho encontrando nas redes sociais merece tratamento à parte: o de que o linchamento simbólico é apenas mais uma aplicação da máxima "ouvir o que não se quer é o preço de dizer o que se quer". O que realmente não é o caso. Por quê? Vamos lá.

Quem conhece este blog há mais tempo sabe que tenho uma posição absolutista, alguns diriam até quixotesca, em defesa da liberdade de expressão (exemplos aqui, aqui e aqui, bem como este material no Amálgama). Então, antes que me perguntem, não, eu não acho que linchamentos virtuais devam ser proibidos ou punidos legalmente, a menos que causem danos mensuráveis (como alguém perder o emprego porque foi difamado no Facebook), ou que redundem em linchamentos reais.

Porque, sim, existe uma (enorme) diferença entre uma coisa e outra. Uma das táticas mais comuns dos linchamentos virtuais é a tentativa de borrar a distinção, tando de espécie quanto de grau, entre opinião e ação, e de tratar o autor de uma ideia infeliz ou de um artigo questionável como se fosse impossível distingui-lo de um assassino ou de um estuprador. Não caiamos nessa. Como diz o filósofo Daniel Dennett, uma das características da condição humana é que podemos soltar nossas ideias no mundo e, se elas estiverem erradas, vê-las morrer em nosso lugar. Não vamos abrir mão dessa vantagem.

O que pretendo aqui é simplesmente argumentar que existe uma diferença perceptível entre crítica e linchamento; que a segunda abordagem é desonesta e inválida; e, portanto, que as pessoas que esperam ser levadas a sério como adultos num debate civilizado (e não vistas como crianças birrentas em busca de alguém que lhes troque as fraldas) devem se abster de usá-la.

Muitas tentativas de distinguir entre crítica e linchamento se apegam à questão do tom, que de certa forma foi mais ou menos o que fiz ali em cima, quando divaguei um pouco a respeito de como não se deve tratar opiniões como se fossem agressões físicas. Questões de tom são relevantes, mas me parecem menos relevantes do que se costuma imaginar.

Linchamentos são, sim, grosseiros e agressivos, mas embora necessária, essa não é uma característica suficiente. O que realmente define um linchamento virtual é o fato de ele atacar não o que se diz, mas quem diz, e o ato de dizer.

Essa distinção entre o criticar "o que se diz" e criticar "o ato de dizer" parece sutil, mas não é: trata-se da diferença entre polemizar com um herege e mandá-lo para a fogueira. A crítica é um convite (ou desafio) ao debate, ao diálogo. O linchamento é um cala-boca retroativo.

Claro, há coisas que não devem ser ditas em certos contextos, e cuja mera articulação merece ser reprovada: ideias criacionistas em aulas de ciências, por exemplo, ou grosserias no meio da rua. Mas aqui estou me referindo à arena do debate público, da conversação civil e democrática em geral, não a espaços restritos e contextos específicos.

E, assim, chegamos à palavra esquisita do título, "taurascática". Ela foi cunhada pelo especialista em retórica clássica James Fredal, num artigo publicado em 2011, para se referir "ao estudo de falar merda" ("the study of bullshit", no original).

A prática de "bullshit", ou "falação de merda", foi definida pelo filósofo Harry Frankfurt (num ensaio publicado sob a forma de livro em 1995, e já traduzido no Brasil) como o discurso que é indiferente às categorias de "verdade" e "mentira", e que se importa apenas com o efeito que produz no receptor. Uma pessoa que "fala merda" não quer saber, não liga, se o que diz é verdadeiro ou falso: ela dirá qualquer coisa para convencer ou impressionar quem a ouve.

Por essa definição, praticamente toda a política e toda a publicidade são bullshit,  ou "merda". E as pessoas que compartilham memes e links nas redes sociais sem checar se o conteúdo é verdade, mas só porque esses memes e links parecem reforçar algo em acreditam e de que gostariam de convencer os outros, estão bullshiting, "fazendo merda". E assim por diante.

Proponho que, de acordo com a definição de Frankfurt, linchamentos virtuais são um fenômeno de bullshit, taurascático, na medida em que a verdade ou falsidade do que foi dito (pelo linchado) e do que se diz (pelo linchador) é imaterial. O que importa é o efeito afetivo na plateia (ódio e desprezo pelo linchado) e, idealmente, na vítima (vergonha, silenciamento e retratação).

Em seu artigo "Rhetoric and Bullshit", Fredal vai além das categorias de falso e verdadeiro da definição de Frankfurt e propõe que o bullshit envolve, também, uma transgressão dos códigos da conversa civilizada, em que cada uma das partes espera ser ouvida de modo ponderado, respeitoso e receber informações corretas da outra.

Para Fredal, há um componente emocional essencial para a percepção de que há uma tentativa de bullshit em curso: o "bushitee", a vítima, quando se dá conta do que está acontecendo, sente-se violada em sua integridade pessoal. "Falação de merda envolve níveis de intensidade emocional que a mera falta de polidez raramente atinge", escreve ele. "A falação de merda geralmente inclui um senso de surpresa -- a ofensa é vista como imerecida e inesperada".

Prossegue: "Bullshit acontece, de modo mais geral (...) quando uma das partes em um encontro se sente suficientemente superior (em posição, autoridade ou perícia retórica, por exemplo) para abir mão dos rituais da interação cooperativa". No caso dos linchamentos, essa presunção de superioridade é quase sempre moral: quem quer perder tempo argumentando com alguém... machista? homofóbico? racista? tucano? petista? Melhor fazê-lo se arrepender de abrir a boca, e pronto.

Questões de honestidade intelectual à parte, a substituição de críticas ou réplicas legítimas por bullshit é um problema porque não informa os indecisos, não esclarece os ignorantes, não estimula a reflexão nos adversários. Apenas excita os imbecis, atrai o aplauso (ou a submissão) dos convertidos e aliena todos os demais.

Comentários

  1. Não sei. Parece que considerar o linchamento moral como uma manifestação verbalmente agressiva de expressões sem preocupações com a veracidade do conteúdo faz com que perca a analogia com o linchamento real, físico.

    O linchamento, parece-me, tem alguma preocupação com a verdade dos fatos - se a turba é convencida de que uma determinada pessoa é vítima de erro de identidade e/ou que o suposto crime imputado não ocorreu (digamos, o testemunho da vítima), ela será dissuadida do intento de agressão.

    []s,

    Roberto Takata

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    1. Sim, mas aí é preciso fazer a distinção entre a veracidade do ato imputado à vítima (é um pedófilo, digamos, no caso físico, ou disse/rescreveu algo que contraria os dogmas do grupo, no virtual) e, algo que só se aplica ao virtual, a veracidade do conteúdo veiculado pela vítima (o discurso antidogmático pode ser, ele mesmo, verdadeiro ou falso). O linchamento virtual talvez pare se a afirmação "fulano disse X" for falsa, mas é insensível à questão de fundo "X é verdadeiro ou falso".

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    2. Aí, parece-me, não pela insensibilidade em si quanto ao status de veracidade ou falsidade do conteúdo, mas pela certeza de que é uma mentira e que é um mal.

      []s,

      Roberto Takata

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