E o jornalismo que era bom virou marketing ruim

O caderno Fovest, da Folha de S. Paulo, publicou matéria neste domingo sobre os hábitos de consumo de informação dos vestibulandos mais bem-sucedidos no exame mais concorrido do Brasil, a Fuvest, que seleciona estudantes para a Universidade de São Paulo (USP), não só geralmente considerada a melhor do país como a que aparece, na maioria dos rankings internacionais, de modo consistente, com a primeira ou segunda melhor da América Latina, e também para a Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa.

O produto final, tal como editado e publicado, representa uma das mais desesperadas tentativas de transformar limão em limonada e maquiar o virtual desaparecimento da mídia impressa do radar de relevância da juventude jamais vistas. Sério, é de dar pena. Olhando o modo como os dados foram apresentados, é difícil decidir qual o alvo da manobra de marketing -- se o veículo, afinal, esconde a verdade de seus leitores ou de si mesmo.

Aos números. Eles mostram que maioria esmagadora dos candidatos à Fuvest consome notícias online (85% dos aprovados, ante 78% dos reprovados, dentro da margem de erro declarada de 4 pontos), que 45% dos aprovados na Fuvest leem a Folha, especificamente (ante 43% dos reprovados), e que apenas 2% dos aprovados não leem jornal nenhum, mesma taxa dos reprovados e dos não-vestibulandos. Outro dado curioso é que, na classe C, 90% dos aprovados consomem noticiário online. Entre os não-vestibulandos, apenas 37% dos jovens disseram ler a FSP.

Então, 98% dos entrevistados disseram ler algum tipo de jornal. Uma maioria impressionante dos vestibulandos bem-sucedidos (17 de cada 20) consome informação via internet; e tanto a maioria dos aprovados (55%) quando dos reprovados (58%) não leem a Folha, sendo que a diferença entre os dois grupos, nesse quesito, está bem dentro da margem de erro declarada, de 4 pontos.

Esses dados, somados ao fato de apenas 37% dos jovens não-vestibulandos consumirem o jornal, apontam duas conclusões: que a leitura (ou não) da Folha é irrelevante para o desempenho no vestibular -- já que tanto a maioria dos que passam quanto a maioria dos que não passam ignoram o jornal --, mas que ser vestibulando estimula a leitura da Folha. Enfim, o mantra "leia jornal para se informar para o vestibular" fica reduzido a mera superstição.

Conclusões fortes demais para poucos dados, você diz? Mas então, que tal a chamada que a FSP fez na capa, acima da manchete da morte de Fidel Castro -- acima da notícia da morte de Fidel Castro! --  sobre o assunto?


Uma primeira leitura apressada (olhe o colorido "Leia & Passe" aí em cima ) sugere que o jornal está afirmando que basta ler a Folha para ser aprovado no vestibular. Não, em nenhum momento isso é dito com todas as letras, como em nenhum momento dos comerciais cerveja é dito com todas as letras que o barrigudo que bebe as marca "X" vai ficar com a morena de biquíni dourado. Mas é o que o mise-en-scène sugere.

Aliás, afirmação contida na chamada ("Datafolha mostra que acompanhar noticiário aumenta chance de ser aprovado no vestibular da USP") é, se não negada, pelo menos fatalmente enfraquecida no corpo do texto: se os editores cederam à musa do marketing de desespero, o autor da matéria (não assinada) pelo menos preservou algum brio. O texto interno do jornal ouve especialistas que apontam, corretamente, que não é impossível inferir causação a partir da (alegada, suposta) correlação entre leitura de jornais/aprovação no vestibular. Para ficar em dois trechos, o primeiro da fala de uma economista da USP:



O segundo, de uma educadora do Instituto Inspirare, ainda tenta puxar um pouco a brasa para a sardinha do jornal, ao concluir que "estar bem informado ajuda na vida". Mas isso é uma platitude, um truísmo, do tipo "comer bem ajuda a manter a saúde":


Enfim, a edição vende uma tese marqueteira -- a de que ler jornal (a FSP, especificamente) ajuda a passar no vestibular -- que os números, mesmo torturados até o ponto da agonia, não sustentam. Mas talvez o verdadeiro alvo da reportagem sejam não os leitores,e sim os anunciantes? Porque também somos brindados com este gráfico, a respeito dos hábitos dos aprovados na USP:


Que é mais um recado para o mercado publicitário do que para o pobre assinante, que põe a mão no bolso para ler uma página de cabotinismo marqueteiro em plena manhã de domingo.

Comentários

  1. E toda vez que se falava em algum tipo de órgão regulador, tipo CONAR, a mídia em uníssono gritava: CENSURA.

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