Uma mentira de pernas longas

Imagine uma fraude jornalística tão descarada que seu autor preferiu assinar o texto como "S. Ellmore", um trocadilho farsesco da expressão "sell more" -- "vende mais" -- no caso, mais exemplares do jornal onde a mentira foi publicada. Imagine que essa fraude descreve uma violação tão cabal das leis da física e do mero bom senso que todos os especialistas no assunto são unânimes em declarar que o evento relatado é impossível. Imagine, ainda, que o próprio autor da fraude acabe vindo a público parta oferecer um desmentido.

Imagine agora que, a despeito disso tudo, o acontecimento descrito na fraude siga sendo considerado real por décadas, por multidões, por filósofos e cientistas, por pesquisadores e historiadores, que o desmentido que deveria ter posto fim a tudo seja desacreditado e que setores e líderes do povo citado -- falsamente -- como criador do evento -- inexistente -- não só passem a reivindicar a proeza, mas também a tratá-la como parte da essência de sua cultura.

Se imaginou tudo isto, você imaginou a improvável história do Truque Indiano da Corda.

Esse suposto "truque" talvez seja menos célebre entre nós do que em meio aos povos de língua inglesa, mas é provável que você já o tenha visto em uma ilustração antiga, num desenho animado ou em alguma obra de ficção. Ele existe em duas versões, a clássica e a sangrenta. Na clássica, um faquir faz uma corda desenrolar-se e subir rumo ao céu, sem meio visível de suporte. Em seguida, um menino escala a corda e, ao chegar a sua extremidade superior, desaparece. Minutos depois, ressurge no chão, para os aplausos de todos.

A versão sangrenta é, bem, sangrenta: nela, depois do menino desaparecer, o faquir, levando uma faca entre os dentes, sobe também pela corda, e desaparece. Em seguida, pedaços do corpo da criança caem do céu. O faquir reaparece no chão, junta os membros despedaçados num cesto -- e, do cesto, o menino emerge, perfeitamente saudável.

O "truque" entrou na consciência ocidental nos anos finais do século 19. Pouquíssimas pessoas alegaram tê-lo visto pessoalmente: a maioria dos relatos era de segunda ou terceira mão. Ilusionistas ilustres, como o grande J.N. Maskelyne (1839-1917), declararam que a execução, ao ar livre, do truque tal como descrito era impossível  (num teatro, a coisa mudaria de figura). Prêmios foram oferecidos; fotografias, apresentadas; registros históricos, como os relatos de Marco Polo ou do viajante medieval árabe Ibn Battuta, invocados como prova de que algo como o "truque" teria existido, durante séculos, no Oriente.

Toda essa história é relatada, em detalhes, no livro The Rise of the Indian Rope Trick,  do historiador britânico Peter Lamont. Ele realiza um levantamento bibliográfico imenso até localizar a primeira menção do truque em texto impresso -- e o que encontra é uma nota publicada no jornal Chicago Tribune em 1890, assinada por "Fred S. Ellmore", mas na verdade de autoria de John E. Wilkie (1860-1934), jornalista que anos depois viria a ser diretor do Serviço Secreto americano e recrutaria Harry Houdini para missões na Europa (mas essa é outra história).

Lamont encontrou até mesmo uma confissão da fraude, assinada por Wilkie e publicada na imprensa britânica. A carta de Wilkie à revista People's Friend termina com as palavras: "sinto muito que alguém tenha sido iludido". O historiador nota, no entanto, que a confissão nunca recebeu "sequer uma fração" da publicidade dada à história original, que simplesmente ganhou asas, cresceu e se multiplicou.

Textos como os de Marco Polo e Ibn Battuta, bem como diversos relatos folclóricos sobre pessoas que ascendem aos céus por meio de cordas mágicas, foram reinterpretados retroativamente como "evidência" do truque, num processo não muito diverso do de reinterpretação das Escrituras judaicas por teólogos cristãos, em busca de prefigurações do Messias. Exploradores foram à Índia em busca do truque. Depois de algumas décadas de insistência ocidental, indianos interessados em conquistar os crédulos começaram a dizer que truque era real. Mas jamais houve uma testemunha fidedigna ou uma apresentação convincente ao ar livre.

O livro de Lamont é fascinante tanto como história social e das mentalidades quanto como estudo psicológico e, indiretamente, do poder involuntário da mídia: Wilkie não escreveu seu artigo fatídico como parte de uma conspiração sinistra, mas apenas para vender mais jornais num determinado dia pouco movimentado da imprensa de Chicago. Mas a bola de neve simplesmente fugiu ao seu controle.

Outra lição importante do livro diz respeito ao poder que uma mentira bem divulgada tem em sufocar a verdade, ainda que haja fontes disponíveis sobre os fatos reais: basta que essas fontes sejam obscuras e em menor número. Mesmo com o desmentido de Wilkie e as fontes abundantes dando conta de que nenhuma descrição do truque jamais havia sido publicada antes de 1890, muitos autores sérios e historiadores continuaram a tratar o "truque" como algo possivelmente real. William Poundstone, normalmente um bom divulgador de ciência, na seção sobre truques de mágica de seu bom livro Bigger Secrets chega a afirmar que o truque indiano da corda "provavelmente existiu".

Comentários

  1. Peter Lamont também escreveu um artigo específico sobre Daniel Home, em que diz:

    "Os historiadores que escreveram sobre o espiritualismo vitoriano disseram pouco sobre os fenômenos relatados das salas de sessão, apesar de tais eventos terem sido a principal razão dada pelos espiritualistas para as suas crenças. Em vez disso, essas crenças têm sido vistas como uma resposta à chamada ‘crise de fé’, e sua expressão como parte de um discurso científico e cultural mais amplo. No entanto, o debate sobre os fenômenos de sessão foi significativamente problemático para os vitorianos, em particular os fenômenos relatados associados com o médium vitoriano mais conhecido, Daniel Dunglas Home. Na tentativa de fornecer uma explicação natural para os fenômenos de Home, dois grupos de peritos foram consultados – mágicos de palco e cientistas – e ainda assim parece claro que os primeiros foram incapazes de explicar os fenômenos, enquanto os cientistas que testaram Home concluíram que seus fenômenos eram reais. A esmagadora rejeição da ação sobrenatural, e a natureza da resposta da ciência ortodoxa, sugere que tais fenômenos relatados foram menos o resultado de uma crise de fé do que a causa de uma crise de evidência, as implicações as quais foram consideradas científicas e não religiosas."

    O artigo está disponível em
    http://www.research.ed.ac.uk/portal/files/11872202/Spiritualism_and_a_mid_Victorian_crisis_of_evidence.pdf

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    1. Só não nos esqueçamos de que a opinião pessoal de Lamont (citada nas notas da biografia que ele escreveu) era de que Home era apenas um charlatão talentoso...

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    2. Stephen Braude critica algumas passagens deste livro de Lamont sobre Home:

      "Lamont has for years refused to accept any of Home’s phenomena as genuine instances of PK, usually citing the sorts of concerns we’d expect from a magician. But until recently, his remarks were confined to public lectures and relatively short published papers. However, Lamont’s recent book on Home purports to provide a lengthy and detailed examination of Home’s career and the evidence for his phenomena. In this work, Lamont takes an apparently more agnostic stand, but still cites an earlier paper as containing his reasons for not being convinced by any of the evidence. So it’s worth asking: how does Lamont deal with Crookes’s accordion test? How does he avoid presenting it as a compelling and pivotal piece of evidence, in the face of which skepticism and even agnosticism look like mere intellectual rigidity? The answer is that he describes it only very cursorily, leaving out some relevant details[27] and getting others wrong,[28] and then he barely discusses the experiment thereafter.

      [27] E.g., that Crookes went to Home’s apartment and watched him change clothes.

      [28] E.g., the material out of which Crookes’s cage was constructed. Lamont also claims that Home removed the accordion from the cage, when in fact it was his hand that he removed. And nine witnesses were present for the test, not four, as Lamont claims. Equally disappointing, when Lamont suggests various (frequently highly implausible) ways in which Home might have faked the materialization of warm, mobile, fleshy spirit hands that ended at the wrist, he conveniently ignores aspects of the accounts that are likely to be most problematical for the debunker. These include reports that although the spirit hands had been solid enough for sitters to shake hands with them, they then melted or dissolved in their grasp.

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