Sorte ou mérito?




O anúncio de que a Unicamp realizará estudos para implantar um sistema de cotas em seu vestibular reacendeu não só o debate em torno desse tipo específico de medida (sobre o qual já me manifestei aqui), mas também uma discussão de fundo sobre a origem do sucesso (social, econômico, etc.): sorte ou mérito? Quando uma pessoa se destaca das demais, ela deve isso a suas qualidades e esforço, ou a oportunidades que o acaso jogou em seu caminho? A resposta óbvia seria "um pouco dos dois", mas daí surge uma nova questão: é meio a meio? um dos fatores predomina?

Embora o bom senso sugira que cada caso é um caso, a polarização ideológica da sociedade atual levou à criação de campos distintos, com a direita batendo na tecla do mérito e a esquerda, na da sorte (ou "privilégio"). Para complicar ainda mais a situação, vieses cognitivos turvam a questão, com muita gente que "se deu bem" achando que conseguiu tudo sozinho, na marra; e com muita gente que enfrenta obstáculos sentindo-se vítima de uma espécie de conspiração sinistra.

Mesmo admitindo que cada caso é um caso, porém, talvez seja possível trabalhar com isso de forma agregada, tratando um grande volume de histórias de vida estatisticamente, e tentar ver, afinal, se há um fator que predomina na maior parte dessas histórias. Como fazer isso?

Aí entra Seth Stephens-Davidowitz, jornalista e cientista social americano, autor do que provavelmente será o livro de não-ficção mais legal que você vai ler este ano,  Everybody Lies,  sobre o impacto da Big Data -- os grandes agregados de informação gerados por coisas como padrões de busca no Google, "likes" no Facebook ou declarações do Imposto de Renda -- na psicologia e nas ciências sociais.

Stephens-Davidowitz gaba-se de que suas análises dos padrões de busca no Google por piadas racistas e discurso de ódio durante o governo Obama já constatavam a existência da massa silenciosa odienta que viria a virar a eleição a favor de Trump.

Uma das principais teses do livro é de que as pessoas mentem quando respondem a pesquisas e de opinião pública ou questionários psicológicos: pouquíssimos pais de família respeitáveis de classe média alta vão dizer, na cara de um pesquisador de prancheta na mão, que não gostariam de que sua filha se casasse com um negro. Mas, argumenta o autor, o Google é um confessionário: esses mesmos pais, na intimidade de seus lares (ou celulares), vão "googlar" nigger jokes assim que o pesquisador se afasta. Google Trends -- a ferramenta do Google que permite analisar a evolução dos termos de busca inseridos no sistema -- gera, segundo ele, dados mais reais que a pesquisa social tradicional.

Everybody Lies é uma cornucópia de informação perturbadora (uma explosão de buscas por "meu pai me bateu" num momento em que todos os dados oficiais apontavam que a violência contra crianças estava em declínio; uma parcela significativa das buscas por pornografia violenta é feita por mulheres; etc.). Mas o que o livro tem a dizer sobre a questão sorte versus mérito?

Um dos estudos realizados por Stephens-Davidowitz com base em Big Data envolveu baixar toda a Wikipedia e, uma vez eliminados os criminosos e outras figuras infames,  classificar os americanos com biografias na enciclopédia por cidade de nascimento.

Stephens-Davidowitz usou "ter verbete na Wikipedia" como indicador de "sucesso" (um critério imperfeito -- até eu tenho verbete na Wikipedia! -- mas que dá para o gasto). Já o local de nascimento permite testar a tanto a "hipótese sorte" quando a "hipótese mérito". Se a questão é de sorte (ou privilégio), então as pessoas nascidas em áreas abastadas deveriam vir super-representadas; se é de mérito, o local de nascimento deveria ser irrelevante para o sucesso. O que a análise revelou?

De acordo com o livro, existem quatro tipos de local de nascimento que aumentam significativamente a chance de uma pessoa atingir a notoriedade (medida como "ser objeto de um artigo na Wikipedia"). O primeiro é haver uma universidade na área: mesmo cidades minúsculas, pobres e desconhecidas produzem um número desproporcionalmente alto de "celebridades", desde que haja um campus instalado ali.

O segundo tipo é cidade grande: ser filho de uma metrópole exacerba sua chance de se destacar tanto quanto ser filho de uma cidade universitária. O terceiro é presença de imigrantes: nascer numa comunidade multiétnica ou, melhor ainda, ser filho de imigrantes é um potente fator de sucesso futuro. O quarto tipo é especialização: se você nasce numa cidade famosa por seu time de basquete ou por sua fábrica de automóveis, sua chance de se destacar como atleta ou engenheiro cresce.

Tudo isso sugere que, para realmente desabrochar, o mérito requer exposição a ideias novas, pessoas diferentes, contatos e oportunidades. Nem todo mundo que nasce numa cidade universitária, numa cidade grande, tem mais imigrantes ou é filho de uma cidade especializada vai se destacar em algo na vida, mas quem não tem nenhum desses requisitos vai enfrentar uma batalha muito maior para chegar lá.

Sobre "chegar lá": curiosamente, Stephens-Davidowitz aponta que os critérios que ele descobriu têm muito pouca sobreposição com os critérios, encontrados na análise de dados da Receita Federal americana, que preveem a chance de uma criança atingir (ou se manter) na classe média alta ao atingir a idade adulta. Nesse caso, subúrbios endinheirados são melhores que cidades grandes, e um bom sistema de educação pública é fundamental.

Há vários outros resultados interessantíssimos no livro, incluindo uma bela refutação do chamado efeito "bolha", segundo o qual a internet isola as pessoas em ilhas ideológicas não-comunicantes (os números de Stephens-Davidowitz apontam um efeito oposto!), mas ficando na questão mérito/sorte: juntando-se o dado de que o local de nascimento tem uma influência pesada nas chances de notoriedade ao de que a notoriedade não se correlaciona bem com o sucesso econômico, parece-me que a hipótese meritocrática é a que sai mais arranhada dessa história.

No fim, o que temos é uma reedição secular do velho debate cristão sobre a fonte da salvação, a Graça ou as Obras. Parece-me que a conclusão ortodoxa era de que sem a Graça, as Obras de nada valem; traduzindo isso para uma linguagem mais pé no chão, sem um mínimo de sorte, não há mérito ou esforço que prevaleça; e com muita sorte,  mérito e esforço podem até ser supérfluos. Entre um extremo e outro, o melhor é trabalhar duro e, em caso de sucesso, ter a humildade (e a generosidade) de reconhecer o papel crucial do acaso.

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