O preço da alternativa



Um mito comum sobre terapias alternativas é que elas, de alguma maneira, representam  economia para o paciente ou o erário. Esse foi o raciocínio por trás da máquina de propaganda mobilizada por Mao Zedong para inventar a "medicina tradicional chinesa", criando uma ilusão de coerência filosófica que amarrasse a miríade de superstições, invencionices, bruxarias (e algumas observações astutas sobre saúde humana) que curandeiros diversos praticavam, no interior da China, num pacote único que tivesse algum verniz de respeitabilidade. A preocupação de Mao era com o custo de levar médicos adequadamente treinados a todos os cantos da nação continental e, também, criar um produto de exportação atraente, que apelasse à quase automática reverência ocidental diante dos "mistérios do Oriente".

A mesma questão de custos aparece na recente decisão do governo brasileiro de ampliar o cardápio de "terapias alternativas" disponível no SUS. Embora o discurso oficial tenda a enfatizar o "aumento de opções" ao alcance da população, a velha preocupação "maoísta" de economizar com médicos aparece nas entrelinhas. Uma nota divulgada no Portal Brasil menciona que:

não é necessariamente o médico que prescreve esses procedimentos. “Por exemplo, a homeopatia, para você ser habilitado a fazer você pode ser médico, enfermeiro, fisioterapeuta, professor de educação física".

Mesmo considerando a questão  de que, em geral, tratamentos só são "alternativos" porque não há evidência suficiente de que funcionem -- do contrário, seriam chamados apenas de "tratamentos", sem adjetivo -- há uma certa lógica cínica por trás dessa ideia: já que a maioria das queixas de saúde é autolimitante (como se diz por aí, um resfriado tratado sara em sete dias; um resfriado deixado sem tratamento passa em uma semana), pode parecer mais econômico pagar um profissional menos qualificado para distribuir passes de mágica do que remunerar um médico para prescrever remédio de verdade. O contribuinte/eleitor fica feliz com a atenção recebida, a doença some sozinha, o erário agradece.

Pondo de lado, para efeito de argumento, o verdadeiro assassinato serial da ética descrito no parágrafo anterior -- "a maioria" das queixas é menos do que "todas" as queixas, mentir e enganar são comportamentos errados, etc. -- o próprio raciocínio monetário parece não fazer, na verdade, muito sentido. Em suma, falta evidência de que a medicina sem evidência seja mesmo mais barata. Um artigo publicado há dois anos no periódico PLoS ONE aponta que o custo de tratamentos homeopáticos prolongados tende a superar o de tratamentos convencionais. Acumulam-se o preço dos remédios, das consultas e, também, os custos indiretos, como dias de trabalho perdidos.

Além disso, no fim da semana passada o NHS, sistema de saúde pública inglês que, sob diversos aspectos, serve de modelo para o SUS, anunciou que pretende deixar de oferecer uma série de tratamentos que vieram a ser considerados desperdício de dinheiro público, entre eles remédios fitoterápicos e homeopatia.

De acordo com o documento oficial divulgado pelas autoridades  sanitárias britânicas, os dois tipos de tratamento envolvem "produtos de baixa efetividade clínica, onde há falta de evidência robusta de efetividade clínica ou encontram-se questões significativas de segurança". A orientação para os médicos quer atuam no sistema público é "não iniciar novos tratamentos" nessas modalidades e "desprescrever" os que se encontram em andamento, "garantindo a disponibilidade de serviços para  facilitar a mudança".

"No ano passado, 1,1 bilhão de itens receitados foram distribuídos no atendimento médico primário a um custo de £ 9,2 bilhões (R$ 36 bilhões)", diz nota do NHS. "Este custo, associado aos recursos finitos, mostra que é importante que o NHS atinja o maior valor pelo dinheiro que gasta". Números citados apontam que, nos últimos cinco anos, cerca de £ 600 mil (R$ 2,4 milhões) foram dispendidos em homeopatia, apenas. Se esses gastos preocupam os ingleses, nós brasileiros deveríamos estar com os cabelos em pé: dados de 2010 do Ministério da Saúde mostram que, naquele ano, o sistema público nacional gastou ("investiu", segundo a novilíngua dos burocratas) R$ 2,7 milhões em consultas homeopáticas.

O Brasil conta com uma Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC -- imagino que a afinidade fonética da sigla com a palavra "penico"não represente escolha consciente de alguém) desde 2006, durante o governo Lula. Foi esse programa que recebeu reforço agora em 2017, o que mostra que esta é uma das poucas questões no Brasil a contar com apoio suprapartidário.

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